A nudez castigada de Carolina
Não fiquei chocada com as fotos. Elas não são pornográficas ou vulgares. Falta muito para isso. Não há vagina exposta, não há bumbuns escancarados, não há ato sexual, nada constrangedor. Peitos? Nas praias da Europa, mulheres de todos os pesos e idades exibem os seios. Aliás, elas não exibem nada – apenas preferem usar só a parte de baixo da “roupa de banho”, uma calçola para os padrões brasileiros.
Há nu frontal e pelos pubianos de Carolina em pouquíssimas imagens. Ainda assim, pornografia zero. É quase um autoexame de falhas no corpo invejável de uma mulher de 33 anos, mãe de um adolescente. Se existe erotismo ali, é vago. Está na cabeça do voyeur, que se sente, ele mesmo, roubando a intimidade da atriz, assim como o criminoso que a chantageou.
Acima de tudo, não há pretensão nem intenção nos nus clínicos de Carolina. O olhar da atriz para ela mesma é frio em muitas imagens. Carolina era mais erótica na novela das oito, na pele da personagem Teodora, que se vestia, se maquiava e rebolava com a finalidade de despertar desejo.
Fotos caseiras podem, sim, ser pesadamente pornôs. As da atriz parecem um exercício de narcisismo. Seu corpo é lindo, proporcional. Como tantas mulheres saudáveis, famosas ou anônimas, Carolina deve gostar de se ver e de se exibir para o marido. A foto mais sensual, a meu ver, é a que não mostra nada. Com uma calcinha comportada, de perfil, encostada na parede, ela tem os cabelos soltos, o olhar maroto. Bonita como a moça ao lado. São retratos de celular, sem retoques.
Retratos de nus sempre existiram. Feitos por artistas. Quando não havia câmeras fotográficas, eles pintavam as moças peladas, em poses lânguidas ou cruas. Se alguém não conhece a tela a óleo A origem do mundo, de Gustave Courbet, de 1866, dê um Google. Verá um órgão genital feminino peludo, anterior à moda das carequinhas íntimas. O rosto da modelo não aparece, as coxas estão afastadas.
Se existe erotismo, está na cabeça de quem se sente na intimidade da atriz, como o criminoso que a chantageou
Tão realista é a imagem que a tela ficou muito tempo escondida atrás de cortinas ou de outras pinturas, vista apenas por particulares. O Museu d’Orsay, em Paris, comprou a obra em 1995. O mesmo museu expõe agora, até 30 de junho, os nus explícitos de Degas – em pintura, desenho e escultura.
O que as fotos toscas de Carolina têm a ver com obras-primas? A reação exagerada, que fazia sentido em outros séculos. Hoje, artistas contemporâneos e vanguardistas usam celulares para expor fotos domésticas e banais. A britânica Tracey Emin se fotografou nua e expôs na Hayward’s Gallery, em Londres, uma série de imagens. Algumas na banheira, como Carolina.
Um flagrante histórico é a foto de Simone de Beauvoir nua, de costas, feita por um amigo, pela porta entreaberta do banheiro. O traseiro da musa existencialista foi visto pelo mundo inteiro. E ninguém achou que a companheira de Sartre tinha sido ingênua e imprudente. Só libertária.
Se você pesquisar essas imagens, proteja-se do moralismo burro cibernético. O Facebook puniu com três dias de suspensão um fotógrafo carioca que postou Simone de Beauvoir nua. O Facebook também desativou o perfil de um artista norueguês que expôs a tela de Courbet, A origem do mundo. Tudo virou pornografia. Regredimos em relação a um tempo em que a nudez era revolucionária?
Com Carolina, o problema foi a invasão. Ela sempre se recusou a posar nua para revistas. Sua privacidade foi arrombada. O mesmo aconteceu com a atriz Scarlett Johansson. O hacker de Scarlett foi encontrado e preso. Uma pessoa pública precisa pagar o preço pela “imprudência” de manter fotos íntimas num computador? Não creio. Quando a violação eletrônica for punida com ajuda de tecnologia e legislação, poderemos parar de culpar a vítima. E parar de estimular a paranoia doentia com tudo e todos. Espero que essa história termine com um castigo exemplar, não à nudez, mas ao violador.
Meu maior incômodo hoje não é o que o outro pode fazer com você. Mas o que as pessoas fazem a si mesmas. As redes sociais e a facilidade de transmitir texto e imagem criaram a antítese dohomo sapiens. Há obsessão em “compartilhar”. Compartilhar não só bobagens, mas detalhes cotidianos e familiares que não fazem sentido para mais ninguém.
Como se a amizade dependesse desse striptease virtual. Ou como se disséssemos coisas geniais e essenciais o tempo todo. A realidade não existe antes de ser registrada e enviada a uma multidão de “amigos” e seguidores vorazes. Quem se rende a esse hábito é o verdadeiro exibicionista de nossos tempos.
Ruth de Aquino/Época
A platéia de prefeitos resolveu ensinar a Dilma que a primeira vaia ninguém esquece
Habituada aos aplausos das plateias amestradas e aos sorrisos aprovadores dos áulicos, a presidente Dilma Rousseff foi surpreendida nesta terça-feira por sons especialmente agressivos a tímpanos condicionados pelo coro dos contentes. Ao ouvir os primeiros gritos vindos do auditório lotado por participantes da XV Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, a oradora interrompeu a discurseira com expressão confusa. Demorou cinco segundos para captar a cobrança formulada aos berros: centenas de prefeitos exigiam que revelasse, sem rodeios nem evasivas, qual é a posição do governo sobre a distribuição dos royalties do petróleo.
Até então, o inchaço das pálpebras, o olhar sonolento e a voz entediada identificavam uma presidente que não havia dormido direito. A algaravia desafiadora substituiu a mulher cansada pela chefe intolerante, autoritária desde criancinha, incapaz de ser contrariada sem retaliar com a repreensão humilhante, o pito grosseiro, o cala-boca que não admite tréplicas. O vídeo registra a reação rosnada em dilmês vulgar.
“Petróleo… petróleo… Ocês não vão gostá do que vô dizê… Tá?”, começou Dilma, contendo na garganta o som da fúria. “Petróleo… ocês não vão gostá. Então eu vô dizê uma coisa pra vocês. Num tem… não acreditem que vocês conseguirão res… resolvê a distribuição de hoje pra trás. Então, lutem pela distribuição de hoje pra frente”. O ponto final na frase sem pé nem cabeça encerrou também o discurso.
Com a suavidade de um estivador em fim de expediente, o alvo dos apupos capturou o papelório preenchido com letras grandes para que o neurônio solitário não tropeçasse tanto na leitura e se ergueu da cadeira transpirando cólera. Acelerou o andar que aprendeu com algum cowboy americano, fez uma escala diante do presidente da associação dos municípios, interpelou de dedo em riste o organizador do fiasco e saiu de cena cavalgando o chilique.
Como previra, os prefeitos não gostaram mesmo do que ouviram. E revidaram com uma vaia que, além de mais algumas noites insones, garantiu uma vaga perpétua na memória na presidente. Ela logo saberá o que Lula sabe desde aquela tarde no Maracanã: a primeira vaia ninguém esquece.
Augusto Nunes/Veja
Somos um país racista ou um país com racistas?
Casos como o do restaurante Nonno Paolo são manifestações individuais ou sinais representativos da sociedade?
“Como ter preconceito no Brasil?”, perguntou Camila Pereira, 22, uma das sócias do restaurante Nonno Paolo. O restaurante, no bairro do Paraíso, na Zona Sul de São Paulo, foi acusado por um casal de espanhóis de expulsar, no dia 30 de dezembro, o filho deles, um menino negro de seis anos, adotado na Etiópia. Segundo os pais, ele foi segurado pelo braço e levado até o lado de fora do restaurante, onde foi encontrado, aos prantos, pelo casal.
Existem muitas versões para o caso do Nonno Paolo. Não se sabe se o – agora afastado – funcionário que tirou o menino do restaurante de fato o segurou pelo braço (a versão de Camila conta que a criança, que não fala português, teria se assustado ao ser abordada, e saído por conta própria). De acordo com o delegado Márcio de Castro, da 36ª DP (Vila Mariana), tudo indica que a expulsão foi “em decorrência das características da criança, configurando em tese o delito de preconceito de raça, pois impediram o acesso da criança ao local por causa da sua cor”. Segundo a polícia, na ocasião, um homem que se apresentou como gerente teria confirmado que tirou a criança do local, alegando que a confundiu com um morador de rua.
O caso, e a frase da sócia do restaurante, reabriram a discussão sobre o racismo no Brasil. Apesar de questões como as cotas raciais nas universidades, e as infelizes declarações do deputado federal Jair Bolsonaro (que afirma ter entendido mal uma pergunta da cantora Preta Gil no programa CQC da Rede Bandeirantes) trazerem o assunto à tona de tempos em tempos, o Brasil ainda é visto como uma nação onde a miscigenação conseguiu evitar que o racismo se instalasse de maneira marcante na sociedade (o que não evitaria as eventuais manifestações individuais de racismo que todos conhecemos).
É verdade que no Brasil não há grupos de extrema-direita pregando reduções dos direitos dos negros; que os neonazistas do país não passam de meia dúzia de acéfalos com um bocado de tempo livre; e que, nos anos 1960, quando Martin Luther King falava sobre seu “sonho”, as crianças brasileiras nos mais variados tons de peles já iam à escola juntas há décadas. Diferentemente de locais como o sul dos Estados Unidos, no Brasil nunca houve assentos especiais para negros nos ônibus, ou estabelecimentos com placas proibindo a entrada de negros, ou nada próximo do que se viu no regime do apartheid sul-africano.
É verdade também, segundo pesquisas anuais, que os negros no Brasil recebem salários menores, e formam a maior parte dos desempregados do país. No entanto, esses dados são contestados pela afirmação de que isso acontece não por motivos étnicos, mas sim porque os negros formam a maior parte das classes D e E, e, portanto, são menos escolarizados e menos qualificados para o mercado de trabalho, o que nos levaria de volta ao velho argumento de que o preconceito no Brasil não seria racial, e sim social. Essa afirmação, por sua vez, também é contestada: que motivo – senão o racismo – haveria para que negros formassem a maior parte das camadas menos favorecidas da sociedade?
Ontem, hoje e amanhã existirão pessoas racistas, em todo e qualquer segmento de toda e qualquer sociedade. A pergunta que não quer calar é se casos como o do restaurante Nonno Paolo são expressões individuais de racismo ou se são, de fato, representações significativas da sociedade brasileira. E não há momento melhor para se fazer essa pergunta, do que o atual: o Brasil, esse enorme país povoado por gente de todas as cores, pela primeira vez na história tem uma maioria de negros e pardos, de acordo com o censo oficial. Se somos, de fato, uma sociedade racista, o momento para reverter esse cenário, e criar anticorpos para o futuro, é este.
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